sexta-feira, 15 de maio de 2015

América CDA

Sou apenas um homem.
Um homem pequeno à beira de um rio.
Vejo as águas que passam e não as compreendo.
Sei apenas que é noite porque me chamam de casa.
Vi que amanheceu porque os galos cantaram.
Como poderia compreender-te, América?
É muito difícil.
Passo a mão na cabeça que vai embranquecer.
O rosto denuncia certa experiência.
A mão escreveu tanto, e não sabe contar!
A boca também não sabe.
Os olhos sabem – e calam-se.
Ai, América, só suspirando.
Suspiro brando, que pelos ares vai se exalando.
Lembro alguns homens que me acompanhavam e hoje não me acompanham.
Inútil chamá-los: o vento, as doenças, o simples tempo
dispersaram esses velhos amigos em pequenos cemitérios do interior,
por trás de cordilheiras ou dentro do mar.
Eles me ajudariam, América, neste momento
de tímida conversa de amor.
Ah, por que tocar em cordilheiras e oceanos!
Sou tão pequeno (sou apenas um homem)
e verdadeiramente só conheço minha terra natal,
dois ou três bois, o caminho da roça,
alguns versos que li há tempos, alguns rostos que contemplei.
Nada conto do ar e da água, do mineral e da folha,
ignoro profundamente a natureza humana
e acho que não devia falar nessas coisas.
Uma rua começa em Itabira, que vai dar no meu coração.
Nessa rua passam meus pais, meus tios, a preta que me criou.
Passa também uma escola – o mapa -, o mundo de todas as cores.
Sei que há países roxos, ilhas brancas, promontórios azuis.
A terra é mais colorida do que redonda, os nomes gravam-se
em amarelo, em vermelho, em preto, no fundo cinza da infância.
América, muitas vezes viajei nas tuas tintas.
Sempre me perdia, não era fácil voltar.
O navio estava na sala.
Como rodava!
As cores foram murchando, ficou apenas o tom escuro, no mundo escuro.
Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer ponto da terra.
Nessa rua passam chineses, índios, negros, mexicanos, turcos, uruguaios.
Seus passos urgentes ressoam na pedra,
ressoam em mim.
Pisado por todos, como sorrir, pedir que sejam felizes?
Sou apenas uma rua
numa cidadezinha de Minas
humilde caminho da América.
Ainda bem que a noite baixou: é mais simples conversar à noite.
Muitas palavras já nem precisam ser ditas.
Há o indistinto mover de lábios no galpão, há sobretudo silêncio,
certo cheiro de erva, menos dureza nas coisas,
violas sobem até à lua, e elas cantam melhor do que eu.
Canto uma canção,
de viola ou banjo,
dentes cerrados,
alma entreaberta,
decanta a memória,
do tempo mais fundo
quando não havia
nem casa nem rês
e tudo era rio,
era cobra e onça,
não havia lanterna
e nem diamante,
não havia nada.
Só o primeiro cão,
em frente do homem
cheirando o futuro.
Os dois se reparam,
se julgam, se pesam,
e o carinho mudo
corta a solidão.
Canta uma canção
no ermo continente,
baixo, não te exaltes.
Olha ao pé do fogo
homens agachados
esperando comida.
Como a barba cresce,
como as mãos são duras,
negras de cansaço.
Canta a estela maia,
reza ao deus do milho,
mergulha no sonho
anterior às artes,
quando a forma hesita
em consubstanciar-se
Canta os elementos
em busca de forma.
Entretanto a vida
elege semblante.
Olha: uma cidade.
Quem a viu nascer?
O sono dos homens
após tanto esforço
tem frio de morte.
Não vás acordá-los,
se é que estão dormindo.
Tantas cidades no mapa…Nenhuma, porém, tem mil anos.
E as mais novas, que pena: nem sempre são as mais lindas.
Como fazer uma cidade? Com que elementos tecê-la? Quantos fogos terá?
Nunca se sabe, as cidades crescem,
mergulham no campo, tornam a aparecer.
O ouro as forma e dissolve, restam navetas de ouro.
Ver tudo isso do alto: a ponte onde passam soldados
(que vão esmagar a última revolução)
o pouso onde trocar de animal; a cruz marcando o encontro dos valentes;
a pequena fábrica de chapéus; a professora que tinha sardas…
Esses pedaços de ti, América, partiram-se na minha mão.
A criação espantada
não sabe juntá-los.
Contaram-me que também há desertos,
E plantas tristes, animais confusos, ainda não completamente determinados.
Certos homens vão de país em país procurando um metal raro
ou distribuindo palavras.
Certas mulheres são tão desesperadamente formosas que é impossível
não comer-lhe os retratos e não proclamá-las demônios.
Há vozes no rádio e no interior das árvores,
cabogramas, vitrolas e tiros.
Que barulho na noite,
que solidão!
Esta solidão da América… Ermo e cidade grande se espreitando.
Vozes do tempo colonial irrompem nas modernas canções,
e o barranqueiro do Rio São Francisco
- esse homem silencioso, na última luz da tarde,
junto à cabeça majestosa do cavalo de proa imobilizado
contempla num pedaço de jornal a iara vulcânica da Broadway.
O sentimento da mata e da ilha
perdura em meus filhos que não amanheceram de todo
e têm medo da noite, do espaço e da morte.
Solidão de milhões de corpos nas casas, nas minas, no ar.
Mas de cada peito nasce um vacilante, pálido amor,
procura desajeitada de mão, desejo de ajudar,
carta posta no correio, sono que custa a chegar
porque na cadeira elétrica um homem (que não conhecemos) morreu.
Portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la meio de conhecimento.
Portanto, solidão é palavra de amor.
Não é mais um crime, um vício, o desencanto das coisas.
Ela fixa no tempo a memória
ou o pressentimento ou a ânsia
de outros homens que a pé, a cavalo, de avião ou barco,
percorrem teus caminhos, América.
Estes homens estão silenciosos mas sorriem de tanto sofrimento dominado.
Sou apenas o sorriso
na face de um homem calado.

sábado, 2 de maio de 2015

Olha que legal!!! poetas recitando poesias que os inspiraram.


Olha que legal!!! poetas recitando poesias que os inspiraram.

A menos que saia da sua alma (Charles Bukowski)

"se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.

se tens que esperar para que saia de ti
a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.
se tens que o ler primeiro à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.
não sejas como muitos escritores,
não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-
— devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.
quando chegar mesmo a altura,
e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.
não há outra alternativa.
e nunca houve."

Paulo Leminski

ilustração: Mônica Calvo
A noite me pinga 
uma estrela no olho 
e passa.

Testamento (Alda Lara)


À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...

E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...
E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.

Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...

Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...

Poeta Angolana cuja poesia foi apresentada a mim por minha amiga Claudia Diniz que me apresentou várias outras preciosidades poéticas <3

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Mudança de idade (Mia Couto)

Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores nocturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba o tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.